Desafios da solução habitacional em um quadro de desigualdades

Mestrado em Urbanismo da PUC Campinas

ricardo.moretti@ajato.com.br

A solução das demandas habitacionais deverá ser produzida, nos próximos anos, em um cenário de grandes desigualdades, independentemente dos necessários esforços que venham a ser feitos para melhorar a distribuição de renda no Brasil. Esse quadro de desigualdades precisa ser considerado quando se tem em perspectiva o aperfeiçoamento da ação pública na solução da habitação para as camadas mais pobres da população.

Estudos conduzidos pela Fundação João Pinheiro indicam que 84,2% do déficit habitacional quantitativo no Brasil é constituído por famílias com renda mensal familiar até 3 salários mínimos. Os recursos aplicados pelo Poder Público em habitação são predominantemente onerosos, aplicados na forma de empréstimos que devem retornar para os cofres públicos. Os recursos orçamentários, aplicados a fundo perdido, que permitem subsidiar parte do custo da habitação, aumentaram significativamente nos últimos anos, porém representam uma parcela pequena do total investido. Existiu e existe ainda grande dificuldade em prover uma habitação para a população de muito baixa renda. Uma família com renda de 2 salários mínimos, caso consiga ter acesso a crédito com juros baixos, pode tomar emprestado valores da ordem de R$ 15 mil. Não é possível adquirir uma residência com esse valor, em especial nas regiões metropolitanas, e a concretização da ação pública depende dos escassos recursos orçamentários disponíveis para subsídio, ou de abordagens alternativas que não incluem a provisão de uma habitação completa.

A iniciativa pública em habitação, desencadeada pelas 3 esferas de governo, se caracterizou nos últimos 40 anos pelo foco principal na construção de conjuntos habitacionais. A pressão para redução de custos e a baixa disponibilidade de recursos orçamentários para viabilizar os subsídios fizeram com que a maior parte dos conjuntos habitacionais fosse produzida em áreas distantes, pouco conectadas ao tecido urbano.

O foco da ação pública na produção de conjuntos habitacionais em áreas distantes tem catalisado um dos mais perversos e preocupantes processos que se verifica nas grandes cidades brasileiras: o esvaziamento populacional nas áreas mais centrais e bem servidas de infra-estrutura, ao mesmo tempo em que se verifica um rápido crescimento físico e populacional das áreas mais carentes e afastadas do centro. Em São Paulo, por exemplo, a área central, perdeu 230 mil habitantes, no período de 1980 a 2000, passando de 591 mil habitantes em 1980 para 359 mil em 2000. No mesmo período, o distrito de Cidade Tiradentes, localizado no extremo da zona leste, e com predomínio de conjuntos habitacionais produzidos pela COHAB, passa de 8 mil para 190 mil habitantes (Câmara Municipal de São Paulo, 2001). No caso das regiões metropolitanas, a tendência é de estabilidade populacional nos municípios-sede enquanto se verifica crescimento populacional a taxas bastante elevadas nos demais municípios. Avalia-se que a informalidade no mercado de trabalho tenha relação estreita com esse processo. A parcela da população que integra o mercado de trabalho informal e tem dificuldade de comprovar renda encontra grandes dificuldades para a locação, aquisição ou produção de um imóvel nas áreas mais centrais, mesmo quando os preços aí praticados são acessíveis.

Figura 1- Conjunto habitacional de grande porte produzido com recursos públicos em área afastada do tecido urbano. Apesar da crítica recorrente, persiste a produção de empreendimentos com essas características.

Recentemente o Presidente da República manifestou-se inconformado por estar inaugurando um conjunto habitacional com as mesmas características daqueles que vêm sendo produzidos nas últimas décadas. Essa insatisfação é bem vinda. De fato, o sucesso da ação pública habitacional é muitas vezes associado ao número de unidades habitacionais produzidas. Nada mais extemporâneo – há muito tempo, o desafio de uma política habitacional deixou de ser a produção de um teto. As cenas iniciais do filme “Cidade de Deus”, que mostram um conjunto habitacional produzido na periferia da cidade na década de 60 e que posteriormente vai se transformar em um gueto de pobreza e violência, não é nada diferente dos conjuntos habitacionais que estão sendo hoje produzidos. Por sinal, as cenas iniciais desse filme, que buscam retratar como era o conjunto na década de 60, não foram filmadas em um estúdio, mas em um conjunto recentemente construído na extrema periferia da cidade do Rio de Janeiro. Os mesmos erros têm sido infelizmente repetidos.

Se não basta a produção de um teto, também não basta acrescentar infra-estrutura e serviços públicos básicos. A demanda habitacional da população carente não se limita ao acesso à “casa” ou à “cidade”, mas inclui a possibilidade de desfrutar a cidadania que vem sendo sistematicamente negada aos mais pobres. Cidadania que inclui o acesso às oportunidades de emprego e renda, de acesso à cultura, lazer, educação e saúde de qualidade. Por certo é bastante difícil construir a cidadania em uma localidade em que só vivem famílias de baixa renda.

A preocupação com o esvaziamento das áreas centrais e com a má qualidade do projeto arquitetônico e urbanístico dos conjuntos habitacionais já é antiga e tem gerado um esforço de reorientação das políticas públicas. Diversos municípios já contam com iniciativas de produção de empreendimentos habitacionais em lotes e prédios ociosos situados nas áreas centrais. Apesar da força do discurso, a prática avança em ritmo muito lento. Exemplo nesse sentido é o PAR- Programa de Arrendamento Residencial, do governo federal, inicialmente concebido para estimular a produção habitacional em áreas bem servidas por infra-estrutura e serviços públicos. Estudo realizado por Camila Maleronka (MALERONKA, 2005) mostra que dos 3 bilhões de reais aplicados no programa, entre 1999 e 2003, apenas 0,37% (11 milhões) foram aplicados na modalidade PAR-Reforma, que se destina à reabilitação de prédios em áreas centrais. Em diversos municípios a produção com recursos do PAR está, infelizmente, concentrada em áreas situadas nos limites do tecido urbano.

Porém, mesmo em áreas centrais, a inserção social da população carente é um desafio. Os riscos de segregação e as dificuldades de melhoria das condições de vida da população são mais problemáticas nos projetos que concentram em um único espaço um número relativamente grande de famílias de muito baixa renda. A implantação de obras carrega em si uma certa mística. A obra é a meta de grande parte dos administradores públicos. Os construtores defendem a necessidade urgente de ampliar a produção de novas moradias populares – mesmo em glebas distantes e precariamente servidas pelas benfeitorias da cidade. Diversas obras, porém, trazem resultados pífios quando não são acompanhadas de ações complementares e de uma estratégia de manutenção e gestão social. Se na área de habitação temos conjuntos habitacionais que se transformam em guetos de crime e miséria, em outras áreas temos estações de tratamento de esgotos concluídas há décadas, imediatamente ao lado de cursos d´água que permanecem poluídos, campanhas de arborização que se encerram no plantio das árvores e que deixam como saldo os galhos secos de mudas mortas.

É necessário refletir se há como avaliar um empreendimento habitacional de interesse social a partir da análise apenas de seu projeto arquitetônico e urbanístico, quando se tem em mente a melhoria das condições de vida daqueles que vão ali residir? Ou ainda, a excelente qualidade arquitetônica e urbanística de um empreendimento habitacional de interesse social é condição necessária e suficiente para a melhoria efetiva da qualidade de vida da população residente?

Sem dúvida a boa qualidade arquitetônica e urbanística de um empreendimento habitacional ajuda muito. Seria possível dizer que é uma condição necessária. Porém, não se pode dizer que é uma condição suficiente. Há poucos anos foi inaugurado um conjunto habitacional, produzido na região central de São Paulo, em área com boa oferta de empregos e serviços públicos, a partir de um projeto que se distingue pela qualidade, tanto urbanística como arquitetônica. Em menos de um ano o conjunto encontrava-se totalmente degradado. Estudam-se agora os fatores que levaram a tão rápida degradação – entre as hipóteses, tem-se o fato de que as 137 unidades do conjunto foram exclusivamente comercializadas para famílias de muito baixa renda. Essas unidades atenderam 3 diferentes movimentos de moradia, que se rivalizam. Nenhum dos 3 grupos conseguiu força suficiente para liderar uma ação coletiva de manutenção e gestão do conjunto. Supõe-se que esse também tenha sido um dos fatores determinante dos problemas.

Na verdade, tem-se muito a avançar no sentido do aperfeiçoamento do que se pode chamar de “gestão social” dos empreendimentos habitacionais. Nesse âmbito incluem-se as iniciativas dirigidas para a viabilização da mescla de população de diferentes faixas de renda e a mescla de diferentes usos do solo. Incluem-se as iniciativas de capacitação para a manutenção e gestão condominial. Incluem-se os esforços complementares para geração de emprego e renda e para a assistência social das famílias em situação de maior fragilidade.

Entende-se que o projeto de um empreendimento habitacional de interesse social deve necessariamente ser acompanhado de uma proposta de “gestão social” e a análise do empreendimento para liberação de recursos públicos não pode se limitar à análise de projeto arquitetônico e urbanístico.

Outro desafio para a reorientação das diretrizes da política habitacional pública é a adequação de regras e parâmetros face às grandes diferenças regionais existentes no Brasil. Considera-se extremamente arriscado definir parâmetros gerais, que se apliquem indistintamente em todos locais do país. Como exemplo, utiliza-se a renda familiar como principal indicador da necessidade de apoio e subsídio nas políticas públicas de habitação. As condições de sobrevivência de uma família que vive em uma região metropolitana tendem a ser muito mais problemáticas do que a de uma família de mesma renda que vive em uma pequena cidade do interior do país. A utilização do indicador de renda familiar ao invés da renda “per capta” também é questionável. Encontram-se condições claramente diferenciadas em famílias de mesma renda, em função do número de pessoas da família, do número de pessoas que trabalham para obter a renda familiar, do custo de vida local, do vínculo formal ou informal do trabalho e das despesas necessárias para o transporte e condomínio. O quadro 1 ilustra como podem ser significativas as diferenças entre famílias de mesma renda familiar.

A primeira família, em que se tem apenas uma pessoa trabalhando com vínculo formal, em uma pequena cidade do interior, tem uma condição de vida que se pode dizer até confortável. Na segunda família, 2 pessoas trabalham com vínculo informal, deslocam-se e despendem com transporte, residem em uma área segregada do tecido urbano e permanecem longos períodos fora da residência deixando sem apoio os dependentes. Nessa última tem-se uma clara situação de risco social e a condição de vida se aproxima da miséria. Evidentemente não se pode modelar o subsídio e o programa de assistência social como se apresentassem a mesma situação.

Família 1 Família 2
Renda familiar mensal R$700,00 R$700,00
Tamanho da família 2 integrantes (casal) 4 integrantes (mulhere-líder)
Característica da residência Casa bem inserida no tecido urbano de cidade de pequeno porte Apartamento em conjunto habitacional na área periférica de uma região metropolitana
Tipo de vínculo empregatício 1 integrante trabalha,com vínculo formal 2 integrantes trabalham,com vínculos informais
Despesas de transporte —— R$200,00
Despesas de condomínio —— R$60,00
Renda mensal “percapta”, debitadas despesas de transporte e condomínio R$350,00 R$110,00

Quadro 1- Comparação da renda líquida de 2 famílias de mesma renda mensal, com diferente número de integrantes e despesas diferenciadas de transporte e condomínio.

Apesar de todos os esforços, a ação da política habitacional pública tem conseguido alcançar apenas uma pequena parcela da população de baixa renda. As necessidades e a demanda persistem e a população tem procurado encontrar suas soluções. Impossibilitados de adquirir no mercado formal, ocupam áreas de risco e terrenos impróprios do ponto de vista ambiental. O Poder Público tem que vir a reboque, em programas de regularização fundiária e eliminação de riscos, em que são necessárias obras de infra-estrutura significativamente mais caras que aquelas que seriam necessárias em terrenos vazios.

Tem-se um curioso paradoxo. Uma das maiores dificuldades de gestão das cidades é a existência de grandes vazios, que diminuem a densidade média, aumentam os percursos das redes de infra-estrutura e oneram os serviços públicos em geral. Por outro lado, a mais forte demanda dos movimentos de moradia é o acesso a terra. A política habitacional pública, pouco articulada com o desenvolvimento urbano, não tem conseguido assegurar uma ação preventiva que faça com que parte dessa grande reserva de terra ociosa possa ser utilizada pela população de baixa renda. Além da ocupação de áreas problemáticas, outra saída que a população carente tem encontrado para a solução da moradia é a produção de várias residências em lotes originalmente pensados para residências unifamiliares. As “casas de frente e fundos” são o tipo habitacional mais comum na Região Metropolitana de São Paulo – 36% de acordo com os dados da Pesquisa de Condição de Vida, realizada pela Fundação SEADE. A mesma tipologia é utilizada em cerca de 25% dos imóveis de Campinas, de acordo com os dados da companhia de saneamento local, SANASA.(1) É curioso observar que a solução habitacional mais adotada na maior região metropolitana do país, não encontra o mínimo respaldo legal nas exigências da regulamentação urbanística. Quando a transgressão à legislação deixa de ser exceção e passa a ser regra, é necessário questionar os rumos adotados para o estabelecimento das exigências legais e/ou para sua implementação. A legalidade é um direito de todos e a postura irreal da legislação urbanística tem feito com que a regularidade fundiária seja um privilégio de poucos.

Moretti_2.jpg
Figura 2: Representação do padrão usual de produção de loteamentos em áreas periféricas. A redução da densidade populacional implica no aumento dos custos das obras de infra-estrutura e serviços públicos e no aumento das tarifas. Desenho: Ana Lúcia Pinto de Faria Burjato

Com relação à edificação, predomina a auto-construção e tem-se aí um verdadeiro hiato da ação pública. A maior parte das iniciativas não passam de programas elementares de fornecimento de “plantas populares”. São alvissareiras as notícias recentes da ampliação de recursos públicos federais para a assessoria técnica na produção da habitação e referentes à tramitação do projeto de lei federal que viabiliza a assistência técnica gratuita.

A sociedade brasileira se transformou, em diversos aspectos, nas últimas décadas. A própria desigualdade assume outra roupagem. As principais dificuldades de uma família de baixa renda são totalmente distintas agora do que eram anteriormente. Mudaram as características do trabalho, o perfil e tamanho dos núcleos familiares, o perfil de despesa doméstica, o tipo de moradia predominante, o acesso à informação. Os rumos e prioridades da política habitacional pública, nas diversas esferas de governo, também precisam mudar – não se pode aceitar que a ação central permaneça sendo a produção de conjuntos habitacionais exclusivamente destinados à moradia da população de baixa renda, em áreas fracamente conectadas ao tecido urbano.

BIBLIOGRAFIA

CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Habitação na Área Central. São Paulo, Relatório da Comissão de Estudos sobre Habitação na Área Central. São Paulo, 2001.

MALERONKA, C. PAR-Reforma: quem se habilita? A viabilização de empreendimentos habitacionais em São Paulo através do Programa de Arrendamento Residencial- modalidade reforma: 1999-2003. São Paulo. Dissertação apresentada no Programa de Mestrado em Habitação do IPT, 2005.

FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit habitacional no Brasil- 2000. www.fjp.gov.br ou http://www.pbqp-h.gov.br (destaques).

 

 

(1) Os dados da Região Metropolitana de São Paulo referem-se à última Pesquisa de Condição de Vida realizada pela Fundação SEADE, em 1998 (www.seade.gov.br). Maiores detalhes sobre a coleta de dados em Campinas podem ser obtidos no artigo: “Casas na frente e casas no fundo: realidade à margem da lei ” publicado na Revista Téchne, número 86, de 2004, p. 58-62, de autoria de Ricardo Moretti, Joice Gomes e Julia Moretti.

Categorias

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *