Plano Diretor de São Paulo, 10 anos: uma criança maltratada

São Paulo – Capaz de atrair olhares diferentes e conflitantes, o Plano Diretor Estratégico de São Paulo não foi uma criança morta no berço, como desejavam alguns, mas não teve o crescimento saudável que se poderia desejar. Aos 10 anos, é um menino maltratado por seus tutores, e dias felizes, raros, dependem de tios que o levam para um passeio dominical, para tristeza do pai Jorge Wilheim, arquiteto, urbanista e um dos mentores do projeto. “Minha maior satisfação é que o plano diretor perdura como lei: ele vale, conduz, conseguiu resultados positivos e trouxe inovações”, avalia. “O que me frustra, porém, é que o processo de planejamento foi paralisado na cidade.”

Sancionado há uma década pela prefeita Marta Suplicy (PT), o plano deveria ser a baliza das administrações municipais seguintes quanto a habitação, saúde, segurança, educação, transporte, uso do solo, enfim, tudo o que diz respeito à gestão pública local. Não é preciso ser um gênio para ver que o Plano Diretor, via de regra, restou esquecido: uma caminhada pelas ruas da maior cidade do país oferece exemplos de sobra a respeito do que foi feito e, especialmente, daquilo que se deixou de fazer em termos de planejamento urbano.

Em meio ao debate suscitado pelas eleições municipais, a Rede Brasil Atual, a Rádio Brasil Atual e a TVT publicam uma série de reportagens mostrando como as ações de curto prazo, guiadas pela voracidade partidária, continuam prevalecendo sobre a vontade e as necessidades dos cidadãos. Se São Paulo, que deveria ajudar a encontrar soluções inteligentes para problemas urbanos de um país desigual, não consegue cumprir o que foi acordado entre sociedade, poder público e empresariado, o que esperar do planejamento das cidades brasileiras em sua totalidade? Outra pergunta para a qual abundam respostas.

O início de século em São Paulo é o retrato de uma década perdida. Ou melhor, desperdiçada: um período de crescimento econômico, estabilidade e criação de empregos que poderia ter sido utilizado para promover na capital aquilo que lhe faltava, ou seja, diminuir assimetrias e promover desenvolvimento com qualidade de vida. Com população estimada pelo IBGE em 11,3 milhões de habitantes, 900 mil a mais que em 2000, o município deveria ter deixado há tempos a ânsia de expansão para priorizar o bem-estar.

Dinheiro não falta. Em 2002, a administração municipal tinha R$ 7,7 bilhões para investir. Este ano, são R$ 38 bilhões. Mas as prioridades continuam limitadas à lógica do governante de turno, ainda mais em um contexto em que os instrumentos de participação popular foram cortados, e as subprefeituras, instrumentos de diálogo com a população, desmontadas e entregues a militares reformados.

Tivesse seguido o Plano Diretor, São Paulo teria hoje mais corredores de ônibus e vias exclusivas. Mas as administrações José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (PSD) só agora iniciaram construções do gênero. Antes disso, optaram por abrir mais uma pista na Marginal do Rio Tietê, via que deveria ser expressa. O resultado final foram custos altos, árvores derrubadas, solo mais impermeabilizado e efeito limitado sobre o trânsito, que hoje já consegue engarrafar a nova via.

Na educação, o déficit no oferecimento de vagas em creches não foi resolvido. Amenizar o problema era outra exigência do Plano Diretor, um projeto de Estado – e não de governo. O que poderia ser um ponto positivo, os Centros de Educação Unificado (CEU), são um copo meio cheio – ou meio vazio? Existem 45 CEUs hoje na cidade, mas, do projeto inicial, de promoção da integração cultural e social da cidade, pouco resta. A universalização do atendimento de saúde, outro ponto previsto no Plano Diretor, tampouco se concretizou: nossos repórteres mostram áreas nas quais há um verdadeiro “buraco” de atendimento, ruas que ficam entre duas unidades de saúde e não são atendidas por nenhuma.

Passar à questão da ocupação do solo não oferece horizonte menos nublado. Aqui, talvez, nos deparamos com o ponto que mais afetou os paulistanos nesta década, com o exemplo mais bem acabado de como o crescimento econômico nacional não foi bem capitalizado pelos administradores paulistanos. Em vez de aproveitar o orçamento mais polpudo para garantir moradia adequada à população, a gestão municipal deixou a organização do espaço público ao sabor do mercado. O saldo final é dado pela Secretaria de Habitação de Kassab: 800 mil famílias na cidade vivem “sob algum tipo de inadequação”.

Bananal, Nova Divineia, Vila Pelé, Abacateiro, Campo de Fora: é preciso criatividade para nomear as favelas de São Paulo sem repetir os títulos. Na cidade, mais de 1,28 milhão de pessoas vivem em favelas e cortiços, segundo o Censo Demográfico de 2010. São 355.756 domicílios, muitos com más condições de saneamento e esgoto. Como a Fazendinha, zona norte da cidade, fotografada e retratada em crônica pela RBA nesta série. Lugares onde o cidadão chora e o prefeito não vê. Prefeito, aliás, que poderia ter seguido o que estava previsto no Plano Diretor e adquirido uma série de áreas para a construção de parques, escolas, postos de saúde e, sim, moradias. Mas, como mostrará nossa série, em apenas alguns casos a dupla Serra-Kassab se valeu do chamado “direito de preempção”, e a finalidade não foi exatamente o interesse geral da população.

Enfim, histórias não faltarão para o leitor disposto a se enfronhar no debate sobre o planejamento urbano a partir dos (maus) exemplos de São Paulo. Nas primeiras duas reportagens da série, publicadas hoje (10), mostramos como o Plano Diretor é fundamental para o cumprimento das necessidades dos cidadãos, e como as muitas vontades envolvidas na discussão travaram a renovação do compromisso entre sociedade e poder público.

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