Já disse repetidamente aqui que não sou especialmente fã dos planos diretores, pois não acredito muito na sua efetividade, e a melhor prova disso foi o plano passado, de 2002, que apesar das melhores intenções e diretrizes incríveis, ficou devidamente (e ilegalmente) engavetado por dois mandatos, sem que nada de grave ocorresse. Ao contrário, a prefeitura até inventou de fazer um “plano paralelo”, o tal de SP2040, que não só não foi questionado, como ganhou a adesão de muitos arquitetos-urbanistas.
Ainda assim, não se pode jogar o bebê com a água do banho. Não é porque no Brasil mostram-se pouco efetivos que também devemos desistir de vez de fazê-los. Afinal, aos poucos a cultura urbanística vai se consolidando, e quem sabe em algumas décadas os planos serão verdadeiramente seguidos. No momento atual, o mais interessante par a cidade é que o plano em tramitação na Câmara Municipal seja aprovado, e rápido.
Para uma cidade que ficou cerca de oito anos à deriva do ponto de vista da regulação urbanística, e onde o mercado imobiliário passou a fazer mais ou menos o que queria, a volta de um plano é fundamental. Vale lembrar que as aprovações de novos empreendimentos, como se descobriu e provou, passavam por negociações escusas como nada mais nada menos que o Diretor Geral de Aprovações da cidade, e já nesta gestão descobriu-se a ponta de um iceberg de irregularidades, que passam por propinas na cobrança de ISS relativos aos empreendimentos “aprovados” e do IPTU. Por isso a proliferação de shoppings-centers e outros empreendimentos “estranhos”, para dizer o mínimo. Cheguei a escrever, aqui, que a cidade toda estava sob suspeita.
Pois bem, um Plano Diretor tem como função central identificar e problematizar as dinâmicas que fazem a cidade crescer, indicando como superar os problemas e apontando as diretrizes para uma urbanização mais “organizada”.
Este Plano Diretor agora proposto fez isso com certo sucesso, sabendo ser inovador em seu diagnóstico: embora repleta de paliteiros, a cidade fora do “centro expandido” tende a ser pouco densa. Além disso, sofre um enorme e anti-econômico efeito pendular, já que a quase totalidade dos empregos concentra-se no setor sudoeste, o restante sendo quase só habitacional. Assim, deslocam-se milhões de pessoas, todos os dias, da casa ao trabalho e vice-versa, colapsando a cidade, quando essa movimentação poderia ser muito mais equilibrada, se houvesse oferta de emprego e atividades econômicas mais homogeneamente distribuídas no território. Se essas atividades estiverem conectadas por um sistema mais eficiente de deslocamento por meio do transporte público, rompe-se o ciclo vicioso atual. Por isso, o plano propõe que se incentive o adensamento construtivo nos bairros para além do centro expandido, ao longo das vias estruturais, que serão dotadas, todas elas, de corredores de ônibus expressos e prioritários. Como princípio geral, a ideia é boa, e é a que foi enviada à Câmara pela Prefeitura, meses atrás.
A questão é definir o que é essa “urbanização mais organizada”, mesmo seguindo os princípios acima descritos. Pois um plano diretor é antes de tudo um pacto, entre os mais diversos interesses que interagem na cidade. Aos olhos do empresariado da construção civil, que fazem da cidade um palco de negócios, a melhor urbanização é a que os deixar construir mais e mais, sem impedimentos. Aos olhos dos moradores dos bairros nobres, é a que mantenha sua qualidade de vida. Aos olhos do morador de favela é aquela que pare de expulsá-los para cada vez mais longe.
Como seria de se esperar, normalmente o jogo tende para o lado dos mais poderosos. Neste caso, o mercado imobiliário, saindo de oito anos de pura liberalidade, não tem do que reclamar: propõe-se forte adensamento construtivo por toda a cidade, ao longo dos corredores. Por isso, cabe ao Plano Diretor, se realmente tiver como objetivo estruturar uma cidade menos desigual (o que é em si uma conquista difícil, não acredito que esse seja “O” objetivo central de nenhum plano diretor no Brasil), por um lado controlar o mercado imobiliário, e por outro garantir que a cidade ofereça terra e moradia para os segmentos mais pobres, DENTRO da “cidade que funciona” e não somente nas distantes periferias.
Na disputa pela elaboração final do plano na Câmara Municipal, cada segmento defende o seu. Pequenos detalhes, que podem favorecer ou refrear em muito a atuação do mercado, por exemplo, são disputados ferrenhamente. Além disso, acha-se que o plano deve prever absolutamente tudo, o que não deveria ser o caso, mas acaba transformando-o em um compêndio infindável e as vezes por demais genérico.
Acredito que meu colega e amigo Nabil Bonduki, relator do plano na Câmara Municipal, venha se desdobrando em mil para que o resultado seja comprometido com as diretrizes de corredores de transporte, com a regulação do mercado e com a defesa dos segmentos menos favorecidos. Mas vale dizer que não é uma tarefa fácil. Muitas vezes, vereadores mais afinados com as propostas dos poderosos tentam, na última hora e de forma discreta, enfiar emendas que com poucas linhas podem alterar completamente o sentido do plano.
Aliás, destaque-se o papel exemplar dos movimentos populares, na semana passada. Embora a grande mídia tenha obviamente criminalizado seus protestos e o quebra quebra (sempre há provocadores – infiltrados? – nesses momentos), o fato é que havia um acordo para aprovar o plano tal qual foi redigido após semanas de discussões bastante amplas, para que as emendas fossem discutidas depois, em plenário. No último momento, a oposição tentou inserir emendas, e o movimento, que estava lá, protestou, e conseguiu impedir a manobra. Um ato cidadão. Os movimentos fizeram o que todos nós deveríamos fazer: estar na Câmara para acompanhar e fiscalizar o bom andamento do plano (no SPTV, vale o destaque, onde fui comentar o ocorrido, o Tralli não abordou o quebra-quebra, mas focou na questão das ZEIS em mananciais e das habitações vazias no centro. Ponto positivo. Veja aqui).
Mas por que os movimentos estão tão preocupados com a correta e rápida aprovação do plano? O plano é tão radical e transformador no sentido de uma maior justiça social? Não é que ele seja uma panaceia na defesa dos direitos dos mais pobres; na verdade, não avança tanto assim. Mas pelo menos mantém (e até aumenta um pouco) as Zonas Especiais de Interesse Social, onde se deve construir majoritariamente habitações sociais, especificamente para as faixas de renda mais baixa. Também cria a Cota de Solidariedade, que eu e alguns colegas defendemos lá atrás (ler aqui), que exige que em grande empreendimentos 10% da área seja doada para a construção de HIS. Isso tudo é bom, embora, como disse, não seja o plano por si só que vá garantir que tais instrumentos funcionem de fato. Mas os movimentos de moradia vêm sem dúvida cumprindo seu importante papel.
De resto, há muitas questões em aberto, problemas não resolvidos, como a estruturação de uma política para os espaços livres na cidade. Propostas desastrosas (e até criminosas em tempos de extinção da água) como a de um aeródromo em área de mananciais parecem ter sido pelo menos provisoriamente afastadas. Há também propostas que podem, lá para a frente, transformar-se em instrumentos de mais segregação. É o caso, por exemplo, dos Pólos de Economia Criativa, que podem facilmente promover a elitização e expulsão dos mais pobres, como aponta meu colega Euler Sandeville (clique aqui). A verdade é que muitos dos instrumentos e das diretrizes do Plano só terão algum efeito se concatenados à revisão e outras leis, como a de Zoneamento e o Código de Obras. De forma geral, um plano só pode funcionar minimamente se for de fato aplicado e, ao longo do tempo, regularmente revisado e ajustado.
Sobre a proposta que temos, acho que ela deve ser aprovada, o mais rapidamente possível, e explico porque no fim deste post. Antes, porém, elenco alguns aspectos que ainda podem ser ajustados:
– Os corredores estruturais são eixos de adensamento, porém não foi suficientemente enfatizado no plano que eles devem, por isso mesmo, prever reserva fundiária para a população mais pobre poder morar ao longo deles. Pois senão, a valorização nesses eixos será fenomenal, e se tornarão “corredores imobiliários”. O ideal seria ter sido criada uma ZEIS específica e obrigatória nos corredores. Como isso não foi feito, ainda pode-se inserir no texto a obrigatoriedade de que as áreas remanescentes das desapropriações para a construção dos corredores de ônibus sejam OBRIGATORIAMENTE reservadas à construção de HIS e equipamentos (disse “e” e não “ou”).
– Ainda sobre os eixos, como me apontou meu amigo urbanista Valter Caldana, não está suficientemente claro que o adensamento construtivo ocorra APÓS a construção dos corredores de ônibus. Do jeito que está, pode acontecer a partir do momento em que a obra seja licitada. Como sabemos que, no Brasil, obras podem ser facilmente interrompidas por um próximo prefeito qualquer, pode ocorrer de termos a proliferação de paliteiros ao longo de avenidas sem que haja estrutura de transporte para isso. Todo o princípio do plano estaria em cheque. Ele só funciona se esse adensamento ocorrer JÁ EXISTINDO uma infraestrutura de mobilidade para atendê-lo.
– Também não está suficientemente claro que, para liberar o adensamento construtivo nesse eixos, deve existir OBRIGATORIAMENTE E ANTERIORMENTE um projeto urbanístico para os mesmos. Senão, teremos paliteiros com prédios individualistas de centro de lote, cercado por muros e guaritas, sem nenhuma qualidade urbana. Ainda mais porque o que continua valendo ainda é a lógica anacrônica do método Taxa de Ocupação x Coeficiente de Aproveitamento. O plano até coloca algumas regras, para os recuos, por exemplo. Mas deveria vincular-se de forma mais efetiva à nova proposta de zoneamento, que começa a ser discutida, incorporando aliás as propostas do concurso “Ensaios Urbanos”, promovido pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano, e do qual participei como jurado.
– As Cotas de Solidariedade, talvez o maior avanço democrático deste plano (pensem por exemplo nos empreendimentos com inúmeras torres na Barra Funda, na Moóca, tendo que destinar 10% de sua área à construção de HIS), estão lá. Porém, determinam que o terreno doado deve ser preferencialmente no mesmo lote do empreendimento, ou alternativamente, na mesma Macro-área. O sentido do instrumento se perde um pouco, já que as macro-áreas são grandes, e a oferta de HIS não será obrigatoriamente ao lado do empreendimento (o que seria importante para realmente gerar diversidade social). Porém, pelo menos as macro-áreas representam uma mesma tipologia urbana. Pior seria se se autorizasse a doar os 10% na mesma Macro-Zona. Daí seria a mesma coisa que anular o efeito da cota. Dos males, o menor.
A questão toda é que a cidade não pode mais ficar à deriva, sem plano nenhum. Não que uma vez aprovado tenhamos a garantia de que tudo se ajustará e um planejamento passará a ocorrer. Mas temos que ter algo, isso é fato. Não se pode esperar achando que seria possível termos um plano capaz de por um freio definitivo à ação desenfreada do mercado imobiliário, pois este é não só poderoso como representa uma atividade econômica importante. E de qualquer forma, como foi visto nos últimos anos, ele avança como for, com ou sem plano. Melhor então tentar regulá-lo minimamente. O plano tal qual foi redigido tem avanços em relação ao de 2002. É, em essência, mais democrático e propõe uma nova lógica de estruturação da cidade, com adensamento mais racional, em função do transporte público, o que é uma mudança considerável.
Não podemos então esperar mais e entrar no “período Copa” durante o qual, como no Carnaval, pouca coisa deve funcionar. A cidade não pode se dar esse luxo. Por isso, esta é a responsabilidade da nossa Câmara atualmente: aprovar, sem inventar inserções de última hora, o texto do Plano Diretor, a partir do que foi proposto e do que eventualmente se acorde alterar, em negociações abertas em plenária, nestas semanas.
Não garante quase nada, mas é um começo.
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