Movimentos sociais estão promovendo o direito à moradia com baixo carbono

Os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil vêm se mobilizando há muito tempo para defender os direitos à moradia e melhorar o acesso à moradia digna para as comunidades marginalizadas na maior cidade do Brasil. Essas iniciativas agora estão sendo combinadas com esforços para descarbonizar a cidade e reduzir a poluição para tornar os espaços urbanos mais justos e sustentáveis

A grande área metropolitana de São Paulo é uma das dez maiores áreas metropolitanas do mundo, com uma população estimada em 21 milhões de habitantes. Por ser a maior cidade do Brasil e a capital do estado de São Paulo, tem importância política, econômica e cultural em nível nacional, regional e global.

Um edifício no centro de São Paulo (Foto: Wilfredorrh/Flickr)

São Paulo tem sido o centro de uma luta intensa e contínua sobre os valores que orientam as decisões sobre a terra e os processos de construção da cidade.

Por um lado, o estado e os poderosos agentes do mercado promovem a cidade como um motor de crescimento econômico, o que levou a uma agenda que se concentra na privatização da propriedade e da gestão de serviços e espaços de utilidade pública na cidade.

Por outro lado, uma rede bem estabelecida e ativa da sociedade civil, que se concentra no direito à moradia adequada e no direito à cidade, tem se esforçado para promover mudanças e estabelecer precedentes importantes. Essa rede se mobilizou para proteger a função social da terra e da propriedade, implementar iniciativas habitacionais lideradas pela comunidade em escala e melhorar os assentamentos informais.

É esse cenário de disputa que faz de São Paulo uma importante cidade pioneira: trata-se de uma cidade com processos de urbanização profundamente desiguais, poluentes, especulativos e orientados para o lucro, que também fez um progresso significativo liderado localmente para a criação de uma cidade mais justa e sustentável.

ESTATÍSTICAS VITAIS

  • São Paulo estava entre as dez grandes cidades mais desiguais do mundo em 2016;
  • Enquanto em 2018 o total anual de emissões de CO2 do Brasil foi de 2,1 tCO2e per capita, o total anual de emissões em São Paulo no período de 1994-2019 foi de 3,6 tCO2e per capita;
  • O estado de São Paulo tem um déficit habitacional de 1,16 milhão de residências, com 3,19 milhões de moradias identificadas como inadequadas. Estima-se que 9,4% da população viva em assentamentos informais;
  • Em 2022, o tempo médio de deslocamento em São Paulo era de 62 minutos. Contudo, estudos demonstraram que alguns moradores gastam 2,4 horas em deslocamento por dia, perdendo um mês por ano parados no trânsito e aumentando a pobreza de tempo, a dependência de combustível e a poluição;
  • Estima-se que 500 mil pessoas no estado de São Paulo estejam vivendo em 848 áreas com risco de eventos como deslizamentos de terra ou inundações.

TRÊS ESTRATÉGIAS COLETIVAS

Os movimentos sociais em São Paulo têm trabalhado há décadas para promover formas coletivas de produção de moradias, focando as pessoas e a natureza, e contestando formas especulativas de desenvolvimento urbano que priorizam a geração de lucro em detrimento do direito à moradia.

Recentemente, esses movimentos se envolveram com iniciativas de descarbonização como um aspecto estratégico de seu trabalho mais amplo sobre justiça social e direitos à moradia, promovendo a moradia liderada pela comunidade como uma oportunidade de enfrentar os duplos desafios da desigualdade e das mudanças climáticas. Nesse contexto, a moradia liderada pela comunidade está se tornando estratégica para esforços mais amplos para proteger os “bens comuns” e renaturalizar a cidade.

Esse perfil da cidade retrata as iniciativas habitacionais em andamento lideradas pela União dos Movimentos por Moradia (UNIÃO), cujas estratégias ambientais ajudaram a promover formas coletivas de moradia que promovem a justiça social e contestam a especulação e a exclusão habitacional. Concentra-se em três estratégias coletivas:

  1. Proteção e conservação do meio ambiente para fortalecer os sistemas ambientais e, ao mesmo tempo, melhorar as condições de vida e viabilizar projetos habitacionais autogeridos;
  2. Priorizar a localização para lidar com padrões mais amplos de desenvolvimento urbano insustentável e, ao mesmo tempo, oferecer soluções habitacionais bem localizadas para grupos estruturalmente marginalizados; e
  3. Otimização do uso de recursos para promover energia limpa e materiais sustentáveis e, ao mesmo tempo, reduzir o custo de vida dos residentes locais.

Essas estratégias fazem parte de uma série de esforços liderados por movimentos sociais no Brasil, trabalhando com, por meio de ou apesar das instituições públicas e do Estado. Por meio da análise conjunta dessas estratégias, pretendemos examinar as maneiras pelas quais as ações dos movimentos sociais estão abrindo o debate sobre o desenvolvimento urbano justo e sustentável em diferentes escalas.

“A autogestão é uma estratégia fundamental para melhorar a qualidade e o tamanho das moradias sociais, além de abrir oportunidades para melhorar as condições ambientais e a qualidade de vida das pessoas.”

Evaniza Rodrigues, União dos Movimentos de Moradia, São Paulo

A seguir, abordamos cada uma dessas estratégias e refletimos sobre como podem fazer avançar a interseção entre justiça habitacional e descarbonização. Essas experiências foram documentadas durante uma visita de trabalho de campo a São Paulo em fevereiro e março de 2023 como parte de uma colaboração contínua entre o IIED, a UNIÃO e o Laboratório Justiça Territorial (LabJUTA) da Universidade Federal do ABC (UFABC).

1. PROTEÇÃO E CONSERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE: MELHORIA DA QUALIDADE DE VIDA DOS MORADORES DE BAIXA RENDA

cidade de São Paulo tem uma longa e rica história de autogestão (autogestão habitacional). Desde o início da década de 1980, essa prática tem desempenhado um papel fundamental na integração de preocupações sociais e ambientais nos processos decisórios coletivos relativos à produção de moradias.

A autogestão é uma forma de moradia em que os moradores têm controle sobre o planejamento, a construção, a manutenção e o gerenciamento de suas moradias. Isso pode ser feito de várias maneiras, como por meio de cooperativas, fundos comunitários de terras e associações mútuas de moradia.

Desde que os primeiros programas habitacionais autogeridos em São Paulo foram lançados em 1989, os movimentos sociais de moradia têm desenvolvido competências na integração de práticas coletivas à produção de moradias.

Em vez de priorizar o lucro, a autogestão cria as condições para que as decisões sejam orientadas pelos valores associados à qualidade do projeto habitacional. Isso resultou, por exemplo, em unidades habitacionais cerca de 30% maiores do que o mínimo exigido por lei.

Esses processos permitiram que os possíveis moradores negociassem e abordassem questões contenciosas sobre acessibilidade, densidade, qualidade do material de construção e sustentabilidade ambiental.

Representantes de movimentos sociais e seus aliados técnicos sugerem que, em empreendimentos habitacionais recentes do Minha Casa Minha Vida (MCMV) em São Paulo, as iniciativas de autogestão têm sido melhores em termos de proteção ambiental do que as iniciativas lideradas por incorporadoras do setor privado.

As diretrizes do MCMV exigem que os projetos habitacionais protejam determinadas áreas ambientais (áreas de proteção permanente – APPs) e replantem árvores quando necessário. As diretrizes estabelecem que o reflorestamento não precisa ocorrer dentro dos perímetros dos empreendimentos habitacionais.

Consequentemente, as incorporadoras do setor privado muitas vezes priorizaram a maximização do uso da terra nos conjuntos habitacionais e o replantio de árvores em outras partes da cidade. Enquanto isso, as iniciativas de autogestão costumam levar ao reflorestamento dentro dos conjuntos habitacionais, reduzindo a densidade e melhorando a qualidade de vida dos moradores.

1,16 milhão: o estado de São Paulo tem um déficit habitacional de 1,16 milhão de residências, com 3,19 milhões de moradias identificadas como inadequadas.

A propriedade Barra do Jacaré, por exemplo, no noroeste de São Paulo, que foi concluída em 2019, inclui 592 unidades e uma reserva natural que atende à comunidade, além de ser uma APP. Um processo semelhante está ocorrendo em Alexios Jafet, onde uma propriedade de autogestão com 1.104 apartamentos está atualmente em construção, com sua própria reserva natural.

Com a expansão desse tipo de iniciativa entre os projetos habitacionais de autogestão, a UNIÃO desenvolveu um programa para estabelecer viveiros comunitários de árvores, administrados por grupos de moradores, para proporcionar árvores nativas para iniciativas de reflorestamento no local.

Essas importantes iniciativas ambientais garantem o fornecimento de árvores e plantas para que os conjuntos habitacionais cumpram suas metas de reflorestamento e, ao mesmo tempo, proporcionam uma fonte de renda para os moradores.

É necessário conduzir mais pesquisas para quantificar os benefícios ambientais e sociais dessas iniciativas coletivas em comparação com outras formas de produção de moradias.

Esquerda: Vista aérea da propriedade Barra do Jacaré, no noroeste de São Paulo, conforme mostrado pelo Google Maps, com a área de proteção permanente marcada em verde e um conjunto habitacional em azul, construído por uma incorporadora do setor privado. À direita: Barra do Jacaré (Camila Cocina, IIED, 2023)
Esquerda: Vista aérea da propriedade Barra do Jacaré, no noroeste de São Paulo, conforme mostrado pelo Google Maps, com a área de proteção permanente marcada em verde e um conjunto habitacional em azul, construído por uma incorporadora do setor privado. À direita: Barra do Jacaré (Camila Cocina, IIED, 2023)

2. PRIORIZAÇÃO DA LOCALIZAÇÃO: MORADIAS BEM LOCALIZADAS PARA CIDADES MAIS SUSTENTÁVEIS E JUSTAS

Acessar e assegurar terrenos bem localizados têm sido uma prioridade fundamental para os movimentos de moradia urbana, especialmente em grandes cidades como São Paulo, onde vastas áreas urbanas têm sido sistematicamente excluídas das oportunidades de desenvolvimento de infraestrutura.

De igual modo, os debates sobre descarbonização têm destacado a necessidade primordial de se afastar dos padrões de desenvolvimento que promovem a expansão urbana com uso intensivo de carbono e geram dependência de combustíveis fósseis.

A expansão urbana pode levar a um aumento das emissões devido ao transporte e à construção de infraestrutura, além de poder levar à contaminação da água e ao desmatamento. Paralelamente, pesquisas têm demonstrado que a realocação para as áreas periféricas tem impactos negativos na renda e nos gastos com transporte (veja, por exemplo, Buenos Aires e Cidade do México)

Um estudo (PDF em espanhol) do Banco Interamericano de Desenvolvimento mostra que, no Brasil, o gasto médio das famílias com itens como transporte e outros serviços pode ser até 45% maior para as famílias residentes nas periferias das cidades do que para as residentes nas áreas centrais.

A realocação de moradias tende a ser menos sustentável do que os programas de melhoria no local, além de piorar as condições sociais e econômicas dos deslocados.

A ocupação de prédios vazios no centro de São Paulo é uma prática antiga usada pelos movimentos de moradia para recuperar a função social de prédios bem localizados e exercer seu direito à moradia.

Nos últimos anos, grupos habitacionais desenvolveram projetos para melhorar, regularizar e garantir a locação de edifícios ocupados no centro de São Paulo por meio de iniciativas de modernização. Esses projetos foram realizados sob a égide do programa MCMV Entidades, que apoiou o desenvolvimento de projetos habitacionais de autogestão liderados por movimentos sociais em colaboração com consultores técnicos.

Há vários exemplos de projetos de modernização e de construção de novas moradias em terrenos ocupados bem localizados. Um exemplo de modernização é o Edifício Dandara, na região central de São Paulo, um projeto habitacional de autogestão que reformou um prédio vazio e anteriormente ocupado para oferecer 120 unidades habitacionais.

Um exemplo de construção é a propriedade Maria Domitila, um projeto de autogestão que incluiu um novo edifício com 245 apartamentos em um terreno bem localizado e anteriormente ocupado.

Além dos projetos de modernização e de novas moradias, a promoção de programas de melhoria no local como uma forma de priorizar a localização também tem sido uma estratégia importante dos movimentos sociais, o que levou a esforços para impedir despejos.

Por exemplo, a campanha Despejo Zero foi uma iniciativa nacional lançada em junho de 2020 por movimentos sociais para lidar com a insegurança vivida pelas famílias mais vulneráveis.

Edifício Dandara, um projeto de modernização de autogestão na região central de São Paulo (Camila Cociña, IIED 2023)
Edifício Dandara, um projeto de modernização de autogestão na região central de São Paulo (Camila Cociña, IIED 2023)

3. OTIMIZAÇÃO DO USO DE RECURSOS: RUMO À REDUÇÃO DE CUSTOS E À JUSTIÇA ENERGÉTICA

Uma terceira estratégia coletiva dos movimentos sociais é a otimização dos recursos para promover a energia limpa e o uso mais sustentável de materiais, além de reduzir o custo de vida e as despesas dos moradores de habitações sociais.

A construção de edifícios contribui para quase 40% das emissões globais de carbono (em inglês). Pesquisas em assentamentos de baixa renda mostram que a implementação de iniciativas de eficiência energética saudáveis e de baixo custo (PDF em inglês) não apenas reduziu o consumo de eletricidade e as emissões de CO2, mas também resultou em economias anuais substanciais para as comunidades.

Reconhecendo esse nexo, os movimentos de moradia e seus aliados estão promovendo uma agenda de “justiça energética“.

Atualmente, o Instituto Polis está trabalhando com a comunidade organizada de um projeto habitacional emblemático de autogestão na zona leste de São Paulo, chamado Mutirão Paulo Freire, para instalar painéis fotovoltaicos a fim de permitir a autonomia energética dos moradores.

Construído em 1998, o Mutirão Paulo Freire é emblemático não apenas porque, por meio de um processo de autogestão, forneceu moradia para 100 famílias, mas também por seu uso inovador de materiais de construção e pelo projeto arquitetônico. Hoje, 25 anos depois, essa mesma comunidade está inovando em questões relacionadas à energia e à economia circular.

A instalação de painéis fotovoltaicos tem como objetivo reduzir a dependência do fornecimento de energia da rede e, ao mesmo tempo, tornar a energia mais barata para a comunidade.

Isso também trará outros benefícios, como maior segurança alimentar, já que 22% das famílias brasileiras afirmam que tiveram que reduzir seus gastos com alimentos básicos para pagar as contas de luz. Isso foi desenvolvido como um projeto de autogestão coletiva, que fortaleceu as capacidades organizacionais da comunidade.

Essa experiência contribui para esforços mais amplos liderados pelos movimentos sociais de moradia e pelos consultores técnicos que trabalham com eles, os quais estão constantemente buscando maneiras de inovar com materiais e recursos de construção para tornar a moradia mais acessível e sustentável.

Conjunto Paulo Freire (Alexandre Apsan Frediani, IIED, 2023)
Conjunto Paulo Freire (Alexandre Apsan Frediani, IIED, 2023)

UM OLHAR PARA O FUTURO: DESAFIOS E RECOMENDAÇÕES

As estratégias resumidas acima demonstram o papel fundamental que os movimentos sociais de moradia e suas redes desempenharam na integração da sustentabilidade aos esforços para promover a justiça social em São Paulo.

A seguir, apresentamos o que é necessário para enfrentar os principais desafios identificados pela UNIÃO e seus parceiros de assistência técnica para ampliar os esforços visando à justiça social e à descarbonização na produção de moradias em São Paulo.

  • Mecanismos para manter a natureza não especulativa dos projetos habitacionais além de sua fase de produção e preservar sua função social e ecológica de longo prazo.
  • Reconhecimento de inovações tecnológicas de base que ofereçam alternativas a tecnologias altamente mercantilizadas e excludentes.
  • Uma mudança em todo o setor de construção para a transição para o uso mais sustentável e econômico dos recursos na produção de moradias.
  • Melhoria na capacitação dos funcionários do governo local, transformando a cultura institucional e aprimorando as regulamentações, diretrizes e prioridades de investimento para permitir que o governo atenda às prioridades dos movimentos sociais.
  • Priorizar a ação ambiental e reconhecer o papel dos movimentos sociais no avanço da sustentabilidade como um caminho fundamental para combater a pobreza e a desigualdade.

Texto originalmente publicado no site da “Internacional Institute for Enviromenmt and Development“.

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