Apoiada no tapume do quarto número 2 de uma invasão no centro de São Paulo, Monique Mendes, 52, lista todos os lugares onde morou nos últimos anos: “Eu pagava R$ 900 numa quitinete, mas fiquei desempregada, então passei um tempo na rua, depois num albergue, e aí ocupamos aqui”.
Da janela atrás dela, veem-se os montinhos de cobertores cinzas que já se tornaram parte do cenário da cidade mais rica do Brasil, servindo de abrigo a quem nem sequer o teto tem. “A gente vai fazer o quê? Vai para a rua?”, responde ela sobre a ordem de despejo marcada para dezembro.
A história de Monique é a história da crise habitacional de São Paulo. Mais populosa, a metrópole acumula de longe o maior déficit absoluto de moradias do país, composto por gente que, assim como a diarista, paga aluguéis altos, precisa dividir a morada com outras famílias ou vive em casas precárias.
Assista:
Adicione ao problema uma urbanização que se deu em poucas décadas, sem planejamento e seguindo uma dinâmica do mercado imobiliário que esvazia os bairros centrais e empurra os mais pobres para as periferias. Isso num território de mais de 1.500 km², onde um trajeto de norte a sul pode levar quatro horas de transporte público.
Esse é o tamanho do desafio que o próximo prefeito terá que enfrentar. A habitação será um tema central especialmente nas eleições deste ano, que tem como líderes na pesquisas hoje o atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB), e o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL), que ficou conhecido como liderança do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Ambos devem disputar protagonismo na área: Nunes chamando o adversário de “invasor” e exaltando seus feitos nos últimos três anos e meio de gestão, e Boulos explorando o fato de ter dedicado boa parte de sua vida política ao assunto.
Completam a lista dos mais cotados, segundo a última pesquisa Datafolha, o apresentador José Luiz Datena (PSDB), que diz ter como principal proposta “levar moradias e empregos mais perto de onde as pessoas precisam”, e o ex-coach Pablo Marçal (PRTB), cuja campanha não respondeu ao ser indagada sobre o tema.
Os entraves na questão começam na falta de estatísticas precisas. Segundo a Fundação João Pinheiro, ligada ao Governo de Minas Gerais e ao Ministério das Cidades, a capital paulista tinha 370 mil moradias precárias, coabitadas ou caras demais em 2022 —um déficit equivalente a 8% dos domicílios da cidade.
É o mesmo número informado pela prefeitura, porém a gestão municipal diz que o dado é de 2016 e não divulga uma série histórica. A conta, de qualquer forma, ainda não inclui as milhares de pessoas em situação de rua na capital paulista, cujas últimas contagens variam de 32 mil a 80 mil.
A avaliação geral dos especialistas e movimentos de moradia ouvidos é que São Paulo até tem políticas públicas variadas e planejadas, mas na prática elas estão longe da dimensão necessária, não priorizam os mais vulneráveis e dão muito peso à iniciativa privada.
“A solução mais comum nos conflitos fundiários na Justiça hoje é a desocupação voluntária. As famílias aceitam sair, mas não têm para onde ir. E a prefeitura não tem apresentado alternativas”, opina Taissa Pinheiro, coordenadora do núcleo de habitação da Defensoria Pública de São Paulo.
A urbanista Camila Maleronka lembra que a maior causa do déficit é o gasto excessivo com aluguel, ou seja, famílias que ganham até três salários mínimos e gastam mais de 30% em moradia. “Isso indica que as pessoas estão pagando pela localização, então só construir casas na periferia não resolve”, diz a consultora do Banco Mundial.
Por isso, os urbanistas falam em uma “cesta de soluções” e em pensar a habitação como ferramenta para reduzir as desigualdades, privilegiando a mistura de rendas pela cidade, por exemplo.
Uma forma de fazer isso é fortalecer políticas como a cota de solidariedade, na qual empreendimentos de grande porte têm que reservar ao menos 10% das unidades construídas para interesse social. “Nossa cota ainda é muito fraca, pouco gerida, nem se sabe se vira mesmo de interesse social”, afirma Maleronka.
São Paulo ainda não tem conseguido avançar na tentativa de aproximar seus moradores do transporte público, proposta central do Plano Diretor de 2014, revisado em 2023. “Moradia não pode ser tratada como um teto e quatro paredes”, reforça Anderson Kazuo Nakano, professor do Instituto das Cidades da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Outra é dar um uso para parte dos 589 mil imóveis ociosos (12% do total) que existem na cidade, o que só começou a ser feito neste ano e em baixíssima escala, com a desapropriação dos primeiros cinco prédios pela prefeitura. A propriedade que não cumpre sua função social precisa passar por várias fases antes de chegar a esse estágio, como a notificação (foram 2.112 desde 2014) e o aumento progressivo do IPTU.
“A regularização fundiária precisa ser pensada como solução prioritária, garantindo a titulação da casa e então a melhoria das condições de moradia”, diz a defensora.
Uma das principais críticas de movimentos de moradia é que os programas atuais não têm colocado a faixa de renda mais baixa, que representa 60% do déficit da cidade, na frente. Outra é que deveria haver mais flexibilidade para financiamentos.
“O Pode Entrar [principal programa da gestão Nunes] é bom? Sim. Atende uma parte da população? Sim. Mas não atende famílias de baixíssima renda”, diz Sidnei Pita, da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM-SP), que ajudou a pensar o projeto ainda na época de Bruno Covas, prefeito de quem Nunes era vice.
Ele questiona o papel que a iniciativa privada ganhou com o programa. “Não ofereceram nenhuma área pública para as entidades [organizações sociais]. O que a prefeitura tem feito é comprar unidades prontas [construídas por empresas] para vender, isso não resolve o déficit habitacional da cidade”, afirma.
Já Luiz França, presidente da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), defende o modelo. “A gente tem visto um esforço muito grande da prefeitura em atender e fazer com que cidadão tenha conforto, com o menor tempo de deslocamento possível”, diz.
A gestão Nunes argumenta que o projeto permitiu que, desde 2021, fosse autorizada a construção de 450 mil moradias de interesse social ou mercado popular —407 mil delas pela iniciativa privada. No período, porém, foram entregues na cidade no total apenas 10 mil unidades novas, com outras 26 mil em construção e 25 mil já contratadas.
“A prefeitura tem atuado para fomentar a produção habitacional nas regiões mais bem servidas de infraestrutura e transporte público”, diz o município, acrescentando que sua política habitacional é composta por diferentes programas para a população mais vulnerável, do atendimento provisório ao definitivo.
Além das edificações, a administração afirma que beneficiou 131 mil famílias com procedimentos de regularização fundiária e outras 29 mil com a urbanização de favelas, além de indenizações para ampliar as opções de atendimento às famílias”.
O QUE DIZEM OS PRÉ-CANDIDATOS SOBRE HABITAÇÃO
Ricardo Nunes (MDB)
O prefeito afirma que a área é uma de suas bandeiras e demanda soluções urbanas completas. Ele aposta na continuidade de políticas da sua gestão e cita o Pode Entrar como o “maior programa habitacional da cidade”, com meta de 72 mil novas unidades, retrofit de prédios no centro e créditos de R$ 30 mil por família para reformas. Além disso, enumera ações como regularização fundiária; um projeto com moradias e terminais de ônibus previsto em Guaianases (zona leste); uma linha de crédito obtida para 866 novas unidades e o plano de construir outras 4.732.
Guilherme Boulos (PSOL)
O deputado federal promete entregar 50 mil novas unidades habitacionais, com programa municipal próprio e em parceria com o Minha Casa, Minha Vida, além de promover a atuação conjunta com cooperativas e oferecer locação social através do retrofit de edifícios públicos abandonados. Ele diz ainda que beneficiará 100 mil famílias com reformas de moradias precárias e urbanização de favelas pelo programa Periferia Viva e atenderá outras 250 mil famílias com um “amplo programa de regularização fundiária” integrado com melhorias habitacionais.
José Luiz Datena (PSDB)
O apresentador afirma que “sua proposta é levar moradias e empregos mais perto de onde as pessoas precisam”. Ele cita o exemplo da avenida Jacu-Pêssego, na zona leste, que “merecerá incentivo, inclusive fiscal, para construção de unidades habitacionais, com segurança e integradas” a trabalho e infraestrutura. Promete exigir que parte da mão de obra seja local e diz que é necessário aproveitar terrenos e prédios desocupados, com processos de desapropriação. Acrescenta que favelas terão atenção especial, com urbanização e regularização fundiária.
Pablo Marçal (PRTB): Não respondeu.
Por: Júlia Barbon
Leia texto completo: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/08/crise-habitacional-tensiona-disputa-pela-prefeitura-de-sao-paulo.shtml
0 comentários