Uma cidade aberta e segura

A cidade como lugar aberto e democrático onde “se respira o ar da liberdade”, como era entendida desde a Idade Média, vem sendo destruída pela crescente criação de empreendimentos segregados da malha urbana. Como castelos medievais, as cidades brasileiras estão se transformando numa somatória de áreas segmentadas, muradas, controladas por guaritas policiadas e por circuitos internos de televisão, num verdadeiro “big brother” urbano, que nos remete à apavorante sociedade em que os cidadãos são vigiados 24 horas.
A suposta falta de segurança é o argumento principal para este verdadeiro aparthaid urbano, que imita as sociedades racistas e divididas por conflitos étnicos e políticos. A ausência do Estado e o medo, difundido por programas televisivos, geram negócios imobiliários que se utilizam do marketing de segurança para vender produtos que se alimentam ainda da desigualdade e do preconceito social, que assolam não só as classes média e alta de uma sociedade muito desigual, como até mesmo setores populares que começam a ter alguma capacidade de consumo.

Aos empreendimentos que já nascem segregados, como shoppings centers, condomínios residenciais fechados, centros empresariais e seletos aglomerados de lazer, se somam iniciativas ilegais de fechamento de áreas públicas como ruas, loteamentos, vilas e conjuntos habitacionais, patrocinadas por associações de moradores e, muitas vezes, apoiadas pelas próprias prefeituras. Espaços públicos que, por lei, deveriam estar abertos a todos os cidadãos, são fechados por grades, muros, e cancelas. Taxas a título de condomínio – que legalmente inexistem – são cobradas ilegalmente de moradores por associações administradoras, numa dupla tributação que vem criando dívidas impagáveis e fortes conflitos entre os moradores adeptos e contrários a este tipo de iniciativa.

Este conceito de segurança está sendo colocado em xeque pela onda de assaltos a shoppings centers e a condomínios de luxo em São Paulo. Ao contrário do que muitos imaginavam, estes espaços fechados e segregados não garantem a almejada proteção. Desde o início de 2010, em São Paulo, 15 shoppings foram assaltados, com trocas de tiros, mortos e feridos; 11 condomínios de luxo foram invadidos por quadrilhas armadas, que tomaram por várias horas o controle do lugar, se apropriando das guaritas e dos circuitos internos de segurança para promover um arrastão sistemático de todo o prédio.
Este modelo urbano, que vem se consolidando no Brasil, baseado em bankers fortificados e armados, ao contrário de garantir a segurança, desnudam uma cidade cada vez mais insegura. Sua lógica se combina com uma mobilidade feita exclusivamente por automóveis individuais, que levam as pessoas de estacionamento a estacionamento, sem nenhum contato direto com o espaço público. Alguns paraísos do consumo sofisticado, como shoppings de luxo, não permitem mais o acesso a pé. À sua volta, longos muros criam ruas esvaziadas.

Este processo de desertificação de ruas, praças e parques tornam as cidades ainda mais inseguras, numa espiral decrescente que realimenta o despovoamento do espaço público. Voltados para áreas internas e controladas, lojas, residências, serviços e locais de lazer e cultura, como cinemas e teatros, deixam de se abrir para as calçadas públicas – quando elas existem – que se transformam em corredores vazios onde caminhar entre veículos em alta velocidade e altos muros reforçam a sensação de solidão e medo.

Será possível alterar essa tendência que levará ao desaparecimento da cidade como o lugar da liberdade, da democracia e do convívio humano aberto e sem descriminação? Evidências criam alguma esperança. No debate sobre a nova lei de parcelamento do solo, que há anos se processa no Congresso Nacional, várias entidades têm se posicionado contra a regulamentação dos condomínios fechados, que até hoje inexiste na legislação. O Ministério Público tem promovido ações exigindo a abertura de ruas, loteamentos, praias e espaços púbicos apropriados por particulares ou associações privadas. Moradores de loteamentos fechados irregularmente lutam na justiça contra o pagamento de taxas de condomínios formados sem seu consentimento.
Cresce a consciência de que é necessário reverter este processo. Algumas práticas cotidianas resistem ao desaparecimento da vida urbana. Jovens, de diferentes segmentos sociais, se apropriam de espaços públicos, com se vê nos finais de tarde entre a Avenida Paulista, a Rua Augusta e a Praça Roosevelt, em São Paulo e em tantos “pedaços” de outras cidades brasileiras, como nas orlas marítimas. Namoram, passeiam e se divertem num espaço seguro porque povoado. É crescente o número de pessoas que praticam caminhadas em ruas das cidades.

O comércio de rua, livres das altas taxas que pagam em shoppings, resistem dando vida aos bairros e oferecendo produtos e serviços mais baratos. Ruas se especializam na venda de produtos especializados, como eletrônicos ou madeiras. Na falta de espaços públicos de qualidade, postos de gasolina e suas lojas de conveniência se transformaram em ponto de referência nas noites quentes, mostrando que as pessoas querem viver em cidades abertas, mesmo quando inexistem ambientes adequados. Ciclistas lutam para ganhar espaço e segurança nas vias públicas, ainda apropriadas de forma individual e privada pelos automóveis. Transporte coletivo de qualidade tornou-se objeto de desejo para um crescente setor que já percebeu que é insustentável todos se deslocarem por automóveis.

Reverter o modelo urbano que vem se consolidando no país, baseado em territórios fechados, espaços públicos desertos, na segregação social e no carro como o principal modo de mobilidade, é uma necessidade civilizadora. Felizmente, há alguma luz no final do túnel.

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