Habitação – solução ou reprodução do caos?

fonte: Jornal de Brasília – 7/1/2008

Hoje em dia, comprar uma casa está cada vez mais fácil para parte da população, graças à abundância de crédito na praça para tal fim. Mas a possibilidade do acesso à moradia em condições adequadas chegará aos mais pobres, que constituem a maioria dos moradores das cidades?

O País está vivendo um momento excepcional de ampliação do crédito para a construção habitacional.O chamado PAC da habitação propiciou a disponibilização de recursos para subsídios, que, compostos com os recursos de crédito, e mais especificamente do FGTS, permitem que os financiamentos sejam mais acessíveis a faixa de renda outrora não atingidas por estes Também compõem o PAC a possibilidade de financiamento ao setor público com capacidade de endividamento e recursos a fundo perdido para a urbanização de favelas, tanto na área de habitação como de saneamento ambiental, que estavam bloqueados há mais de uma década. Finalmente, empresas do setor da construção civil abriram capital e captaram mais de R$ 20 bilhões no mercado, que somados os  recursos do PAC, do investimento obrigatório dos bancos privados em habitação no âmbito do SBPE totalizam mais de R$ 120 bilhões disponíveis para investimento na área.

Em uma matemática primária, estes recursos seriam suficientes para urbanizar todos os bairros que apresentam problemas de inadequação de infra-estrutura – que o IBGE contabiliza em 11 milhões de domicílios no País – e oferecer alternativas de moradia para pelo menos 30% do atual déficit habitacional – que é de aproximadamente 7 milhões de unidades habitacionais. Entretanto o que está de fato ocorrendo em nossas cidades parece anunciar um cenário bem diferente deste!

Em primeiro lugar, é importante assinalar que mais de 90% do chamado déficit se concentra nas famílias com renda familiar mensal de zero a três salários mínimos, com pouquíssimo acesso a crédito, não apenas por limitadas possibilidades de retorno, como também pelos inúmeros bloqueios existentes no sistema de financiamento, como os métodos de análise de risco e a exigência de propriedade da terra titulada no nome do tomador. Ora, a maior parte dos moradores urbanos –  e especialmente nesta faixa de renda – são posseiros ou proprietários de lotes irregulares e clandestinos e não tem propriedade registrada em seu nome nos cartórios.

Porém, não reside aí o maior limitador para o êxito da política de universalização da moradia digna, até porque, é possível, utilizando a legalidade existente, dar aos direitos reais legalmente reconhecidos (como a concessão espacial, a concessão do direito real de uso e o direito de superfície) o mesmo tratamento dado à propriedade no âmbito dos financiamentos O grande limitador na verdade chama-se “preço dos terrenos”, que sob a égide do atual modelo de gestão de nossas cidades, simplesmente disparou diante da abundância de crédito, recebendo incrementos em algumas cidades de mais de 50% só no ano de 2007.

Podemos estar diante de uma situação, que já está se verificando em nossas cidades, em que o subsídio vai parar no bolso dos proprietários de terrenos, drenando a capacidade destes atingirem quem mais precisa e reiteradamente jogando os pobres “para fora” das cidades e de suas áreas mais consolidadas e com infra-estrutura. Já vimos este filme antes: desde os arranjos financeiros formulados nos anos 1960 no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), o componente solo – condicionante da localização dos empreendimentos, da sua inserção na cidade e do acesso a equipamentos e serviços – foi delegado aos municípios e aos agentes promotores dos conjuntos habitacionais.

Avaliação qualitativa da inserção urbana dos terrenos realizada no âmbito do próprio BNH em 1985 revelou que menos de 10% dos terrenos adquiridos para a construção de conjuntos habitacionais estavam situados dentro da malha urbana ou imediatamente contíguos a ela, dotados de acesso e transporte e servidos pelo menos por abastecimento de água e energia elétrica Por outro lado, o controle de custos de produção por parte dos agentes financeiros, aliado às limitações dos tetos de financiamento nos programas habitacionais de baixa renda (integralmente voltados para a aquisição da propriedade individual da casa ou apartamento), transformaram o preço dos terrenos no principal
elemento de sobrelucro para os promotores imobiliários do Sistema.

O resultado – visível nos anos 1970 nas principais cidades do País – parece se anunciar agora: boom imobiliário para os setores de média e alta renda, produção de guetos de pobres nas periferias (sobretudo das cidades menores e franjas metropolitanas) e expansão de moradores em favelas.

O produto mais paradoxal deste modelo – além evidentemente da expansão da cidade precária e irregular – é a enorme quantidade de casas e apartamentos vazios em bairros consolidados de nossas cidades. Em cidades como São Paulo, o número de imóveis residenciais vazios é mais do que o dobro do que o déficit – são mais de 400 mil para menos de 200 mil  de déficit. A cena se repete no Rio de Janeiro, Campinas, Curitiba, entre tantas outras. Os números recentes do boom imobiliário de São Paulo, de acordo com o Secovi, não nos deixam mentir: quase 60% dos lançamentos na cidade em 2007 são unidades de preço superior a R$ 180 mil, destinados a uma faixa de renda onde há mais unidades ofertadas hoje do que déficit!

É possível enfrentar este tema, induzindo o mercado a um redirecionamento de recursos? Evidente que sim. Desde 2001 temos no País uma das mais avançadas legislações na área de planejamento e gestão do solo urbano: o Estatuto das Cidades. Ela foi aprovada exatamente com o objetivo de dotar as administrações municipais – que são as responsáveis pelo controle do uso e ocupação do solo – de instrumentos para limitar a captura de investimentos públicos por parte dos mecanismos de valorização imobiliária e ampliar o acesso à terra urbanizada e subutilizada para os mais pobres. Para poder aplicar os instrumentos, a lei requeria a elaboração de Planos Diretores Participativos por parte dos municípios metropolitanos e maiores de 20 mil habitantes. Mais de 1.500 cidades elaboraram seus planos, sendo que muitas incluíram estes instrumentos. Entretanto, para poder implementá-los é necessário mais do que sua inclusão na lei. É necessária a superação da fragilidade  técnico-institucional e vulnerabilidade política das gestões municipais às pressões dos interesses por lucros imediatos, pouco comprometidos com a sustentabilidade das cidades.

Nenhum país do mundo conseguiu universalizar suas necessidades habitacionais sem uma política urbana e fundiária redistributiva. E em todos eles, os governos nacionais tiveram um papel determinante, para além da disponibilização de recursos no apoio a esta transformação da gestão local, e, sobretudo, na liderança de uma agenda para a política urbana no país.

Nunca estivemos tão perto de uma mudança substantiva neste campo – mas também diante de um perigo tão eminente de perdê-la, repetindo os erros do passado.

(*) Urbanista e professora de PUC-Campinas

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